Contos de Fadas BLOGuil
A Bela e a Fera
Era uma vez, uma jovem muito, mas muito, mas muito muito muito muito bonita. Tão bonita que, quando nasceu, ela era um bebê muito, mas muito, mas muito muito muito muito bonito. De tão bonita que a nenenzinha era, seu pai ficou com medo de que ela atraísse maus espíritos, e decidiu colocar seu nome de Feia. Sua mãe, porém, não concordou, já que Feia não era um nome que constasse em seu Manual dos Cinco Milhões de Nomes de Bebê. Assim, eles decidiram chamá-la de Gislaine, mas todos a conheciam como Bela.
Bela foi uma criança tão normal quanto a criança mais bonita da cidade poderia ser. Em sua adolescência, era a garota mais bonita de todos os lugares que ia, paquerada por todos os rapazes, invejada por todas as moças. Ao se formar, Bela jamais conseguiu um emprego, pois seus patrões ou ficavam com segundas intenções, ou tinham pena de colocar uma criatura tão bonita e delicada para pegar no batente. Assim, Bela cresceu muito bela, mas extremamente infeliz.
Tudo mudou em um belo dia, quando Bela passava em frente a uma obra. A peãozada imediatamente começou a mexer com ela. Como já estava acostumada, Bela simplesmente não dava bola, e continuava seu trajeto como se nada houvesse acontecido. Um dos peões, porém, já vinha secando Bela há algum tempo e, neste dia, após encher a cara de goró para criar coragem, decidiu passar uma cantada nela. Para não perder tempo, também decidiu passar a mão em sua bunda.
Nossa heroína, evidentemente, não ficou nada satisfeita com aquele comportamento machista e sexista, e enfiou sua bolsa na fuça do exótico pretendente. Enfurecido e com um dente quebrado pelo celular da doce moça, o trabalhador braçal decidiu partir para as vias de fato, chamado seus companheiros para segurar a rapariga enquanto ele a beijava à força. Ao perceber o destino pior quer a morte que restava sobre ela, Bela correu com todas as suas forças, sendo seguida pela corja de subhumanos enlouquecidos de desejo por seu corpo tenro.
Sem escolha, Bela entrou na primeira casa com a porta aberta que encontrou, uma espécie de castelo da época colonial, provavelmente agora transformado em boate, templo evangélico ou nightclub. Sua esperança era pedir ajuda às caridosas almas que ali habitavam. Seus perseguidores começaram a rir, imaginando que a tinham encurralado, e a seguiram. Perdida dentro da enorme casa, Bela começou a rezar para todos os Santos que conhecia, procurando por um telefone com o qual pudesse chamar a polícia. Foi então que ela se deparou com o dono da casa.
Diante de Bela, surgiu uma enorme fera, peluda, corcunda, chifruda, de caninos protuberantes, babando e cheirando a enxofre. Para espanto de Bela, a Fera se pôs entre ela e seus algozes, rugindo e assustando-os para todo o sempre. Todos fugiram, berrando algo sobre um pacto com o Demo, e jurando jamais importuná-la novamente enquanto vivessem.
No canto da sala, após mijar-se toda, Bela começava a racionalizar sobre o que vira. Foi quando a Fera dirigiu-se a ela, e com uma voz doce e um olhar suave, perguntou se estava tudo bem, e se ela aceitava um chá.
Bela acordou algumas horas depois, e imediatamente começou a rir do estranho sonho que tivera. Após alguns momentos, porém, ela percebeu que não estava mais em seu quarto, mas ainda na casa da Fera, cercada por lençois de cetim e travesseiros de penas de ganso. A Fera estava sentada em frente a uma lareira no canto oposto do quarto, lendo a versão original em russo de Guerra e Paz, e abriu um largo sorriso quando viu que sua hóspede havia acordado. Ele pediu desculpas por tê-la feito desmaiar, e declarou-se feliz, pois jamais recebia visitas. A Fera convidou Bela a comer com ele, pois todos os dias ele fazia suas refições sozinho, e isso era muito chato. Ele também havia separado um lindo vestido bordado com fios de ouro, que desejava que sua hóspede usasse durante o banquete. Confusa, Bela concordou, e a Fera se retirou para que ela se vestisse.
Imaginando que tudo aquilo poderia ser uma pegadinha do João Kléber, Bela começou a procurar pela câmera oculta, quando encontrou um estranho retrato. Era um jovem muito bonito, vestido com as mesmas roupas da Fera, posando naquele mesmo quarto. A Fera retornou para buscar seus óculos, que havia esquecido junto à lareira, quando viu Bela observando seu quadro. Perturbada, ela olhou para o os olhos do monstro, e neles viu muita ternura, mas também muita tristeza. A Fera então lhe contou sua triste história.
Durante muito tempo, ele fora um jovem muito rico e muito bonito, mas também muito fútil, vivendo uma vida de luxo, sexo, gastança e prazeres desmedidos, até que se meteu com a pessoa errada: uma feiticeira. Imaginando que aquela seria apenas mais uma aventura adolescente, a então-ainda-não-Fera deu uma ficada com a feiticeira, mas se esqueceu de ligar no dia seguinte. O troco veio na mesma moeda: ela o amaldiçoou, tirando dele tudo o que mais prezava. Sua beleza, riqueza, vida de luxúria, tudo havia acabado. Somente encontrando um amor puro e verdadeiro ele conseguiria se livrar da maldição e voltar a ser belo novamente.
Bela se compadeceu da história do triste monstro, mas não sabia como ajudá-lo. Foi quando a peãozada que a havia perseguido retornou, agora em maior número, carregando tochas e pedras que não haviam sido aproveitadas em sua construção. Eles começaram a apedrejar a casa da Fera, buscando atear fogo e acabar de uma vez por todas com a aberração da natureza que ali residia. Bela ficou presa entre as chamas, e a Fera partiu para cima de seus agressores, mesmo tomando pedradas e flechadas, até espantá-los todos. Então, ele enfrentou o incêndio, chamuscando seu pêlo, para salvar sua nova amiga. Exausto, após retirar Bela da casa, a Fera desmaiou, pedindo perdão por tê-la feito passar por esta encrenca. Com lágrimas nos olhos, Bela deu um beijo na Fera, buscando livrá-lo da terrível maldição, já que agora ele havia demonstrado ter um coração puro e nobre.
E nada aconteceu.
De longe, a feiticeira vingativa observava, e não conseguiu se furtar uma gargalhada ao ver a patética cena. Sem compreender o que se passava, Bela demandou uma explicação. Na verdade, a Fera ainda não merecia se livrar de seu castigo, pois a condição imposta era que ele encontrasse um amor puro e verdadeiro, alguém com quem se importasse sem levar em conta seus valores materiais de outrora. Sendo Bela a mulher mais linda da face da Terra, obviamente ele havia se aproximado dela por sua aparência, e isso não qualifica um amor puro e verdadeiro.
Irritada, Bela se dirigiu à feiticeira, dizendo que ela é que não entendia nada de amor. Provando que era tão bela por dentro quanto por fora, Bela tomou uma atitude impensável: pediu para que a feiticeira a transformasse também em monstro, pois assim ela e seu amado poderiam compartilhar suas dores e temores, medos e fraquezas, tornando sua vida una por toda a eternidade, sem a maldição de possuir uma bela aparência. Comovida por tal declaração de amor, a feiticeira decidiu rever seus conceitos, e anulou a maldição da Fera. Tornado novamente homem, e profundamente mudado pela experiência que passara, a ex-Fera prometeu jamais deixar influenciar-se pelas coisas materiais novamente, pedindo Bela em casamento. A moça aceitou, mas com uma condição: que ele tomasse um abnho o mais rápido possível, para tirar aquele cheiro de enxofre.
E todos viveram felizes para sempre.